A Galleria del" Accademia, de Florença, exibe muitas
obras-primas da criação artística universal. A mais famosa delas é o Davi de
Michelangelo (1475-1564). Perto dele estão outras esculturas, do mesmo artista,
que me chamaram mais a atenção. São cinco peças aparentemente inacabadas, em
que figuras humanas estão emergindo do bloco de mármore ao qual pertencem. Elas
não são obras incompletas. Michelangelo deixou-as assim de propósito. São a
ilustração mais vivida da concepção que ele tinha sobre o seu ofício.
Michelangelo entendia que o escultor não era o criador da escultura: sua função
seria apenas libertá-la do bloco de mármore que a aprisionava. Ele dizia poder
visualizar perfeitamente a obra acabada ao olhar para o bloco de mármore, e sua
função seria apenas “revelar aos olhos dos outros aquilo que os meus já veem”.
Nesta coluna falo bastante sobre Educação, seus problemas
e o que precisamos fazer para melhorar, mas acabo não sendo explícito sobre a
finalidade da Educação que defendo. É verdade que a Educação é fundamental para
o desenvolvimento econômico, e que o país precisa de Escolas melhores para
crescer. Mas toda formulação macro depende de uma explicação micro, que
apresente a lógica no nível do indivíduo. Ninguém vai à Escola porque quer que
seu país se desenvolva, nem mesmo para ter uma carreira melhor no futuro uma
criança de 7 anos não faz projeções de prazo tão longo nem, quando mais
crescida, permanece em uma Escola chata e frustrante. Pessoalmente, estou com
Michelangelo. Acho que a boa Escola, o bom Professor, liberta o Aluno e faz com
que ele possa desenvolver suas potencialidades e sonhos até os limites impostos
pelo ambiente. Deixe-me elaborar.
Todos nascemos com um nível de inteligência geral (que a
pesquisa chama de “g”) cujo potencial é definido por nossos genes e
posteriormente moldado por fatores do ambiente a que somos expostos (há uma
enorme discussão acadêmica sobre quais os pesos da genética e de fatores
ambientais na inteligência final do adulto. Não sou competente para resumir
essa literatura aqui, mas há um consenso de que não se pode entender a
inteligência humana sem levar em consideração tanto fatores genéticos quanto
ambientais e a interação entre eles). Alguns de nós (ou todos nós, se você
acredita em Paulo Coelho) nascemos com talentos não relacionados com a
inteligência tradicional (lógico-dedutiva), como o talento musical. esportivo,
interpessoal. comunicativo e outros.
A combinação dos fatores genéticos com um ambiente ideal,
estimulante, traça o limite para o progresso de cada pessoa ao longo de sua
vida. Depois da concepção do embrião que dará origem à criança, esse limite
máximo vai sendo reduzido pelas dificuldades da vida. Hoje sabemos que, se a
futura mãe fuma, bebe ou passa por episódios agudos de stress durante a
gravidez, seu filho terá danos para toda a vida. Depois do nascimento, há uma
série de variáveis que conspiram para que o horizonte de possibilidades seja
rebaixado. Algumas de ordem familiar pais castradores, distantes ou
irresponsáveis, que traumatizam seus filhos , outras de natureza totalmente
aleatória (não adianta ter a genética para o surfe se o sujeito nasce no
interior da Sibéria, por exemplo). Há diversas instituições que podem
contribuir para que uma pessoa atinja seu pleno potencial. A Escola é,
disparado, a mais importante delas.
A função primeira da Escola é dar a seus Alunos os
instrumentos de que necessitam para navegar no mundo: o domínio básico da
escrita e das operações matemáticas. Sem elas, é impossível funcionar de
maneira autônoma. Depois, a Escola precisa transmitir aos Alunos uma vasta base
factual, expondo-os ao conhecimento acumulado pela humanidade. Não apenas
porque esse conhecimento é indispensável para o desenvolvimento do raciocínio
(falo mais sobre isso em artigo futuro, sobre neurociência), nem porque, se bem
ensinado, é intelectualmente estimulante, uma vez que crianças são naturalmente
curiosas, mas também porque essa exposição é necessária para que demos às
crianças a chance de ter contato com suas reais vocações. Talvez uma criança
nasça com o potencial de se tornar um médico extraordinário, mas precisará de
algum contato com a biologia para facilitar o encontro com a sua vocação.
Claro, não podemos ensinar na Escola todos os milhares de especializações do
conhecimento humano, mas precisamos abordar as grandes áreas nas quais esses
conhecimentos estão inseridos (genericamente: linguagem, matemática, ciências
sociais, humanas e exatas, artes e Educação física). Finalmente, a boa Escola
precisa fazer com que os Alunos possam usar esses diversos conhecimentos como
ferramenta para desenvolver sua própria capacidade de pensar. Não é importante
estudar história para saber nomes e datas, mas sim ser exposto a nomes e datas
para que se perceba como o estudo da história pode explicar o presente. Quanto
mais ferramentas analíticas a pessoa tiver à sua disposição, melhores serão
suas decisões, e mais próximo de seu máximo potencial ela vai chegar. Por isso
é que mesmo o Aluno que sabe que vai ser advogado deve estudar química: se bem
ensinada, é mais uma ferramenta para ajudá-lo a pensar. Uma boa Educação gera
multiplicidade: de interpretações e de opções.
Um mau sistema educacional gera bloqueios, limites. A má
Escola é como o mau escultor: ela vai deixando tantas arestas, com tantos
pedaços de mármore cobrindo a forma original, que ao fim do processo já nem é
possível divisar a linda escultura que há dentro daquele bloco de pedra.
O problema da Educação brasileira não é apenas relevante
porque priva o país de riquezas e desenvolvimento. Riqueza não é um fim, é um
meio. A finalidade da vida é a felicidade, a plenitude. E é isso que nos é
roubado ao termos um sistema educacional tão incompetente: a cada dia, milhões
de brasileiros ficam mais e mais longe do limite de suas realizações, da
concretização de seus projetos. Quantos brilhantes escritores não estamos
perdendo entre todos os Analfabetos funcionais que saem de nossas classes de
português? Quantos futuros médicos, advogados e engenheiros tiveram de
sacrificar seus sonhos e viver uma vida apequenada porque não conseguiram
entrar em uma universidade? Milhões e milhões, certamente.
Não é fácil aceitar que o papel da Educação é a libertação
do potencial de cada indivíduo. Presume aceitar que somos diferentes, com
capacidades distintas e possibilidades idem. Requer que se admita que a Escola
não pode criar o novo homem, moldar o Aluno. O Professor pode apenas dar asas
ao Aluno para que alce voos mais altos, não determinar o local de chegada. No
Brasil, crê-se que um sistema educacional justo é aquele que entrega, ao fim do
processo, as mesmas esculturas, como se todos os mármores tivessem as mesmas
origens e aspirações. Para chegar a esse nivelamento, o único caminho possível
é a equalização por baixo, a chegada ao mínimo denominador comum. Se aceitamos
as diferenças como inerentes à condição humana, percebemos como a busca pela
igualdade é a mais atroz das formas de injustiça. Que em 2013 sejamos mais
eficazes ao impedir essa mutilação silenciosa das nossas crianças. São os meus
votos para o novo ano.
Fonte: Revista Veja
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