Páginas de
jornais e revistas andam repletas de notícias, interpretações e opiniões a
respeito da legislação que reserva cotas em universidades e institutos técnicos
de nível médio federais para candidatos que se declararem pretos, pardos ou
indígenas, assim como a alunos que tenham feito integralmente o ensino médio em
escolas públicas e a candidatos oriundos de famílias com renda familiar mensal
per capita de até um salário mínimo e meio. Não faltam controvérsias. Mas não é
só por aí que vai a discussão. Ela inclui, também, a discriminação contra a
mulher no mercado de trabalho e na renda.
Segundo
informações deste jornal (28/10), o primeiro Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) pós-lei de cotas mostrou que 54% dos inscritos eram negros ou indígenas,
enquanto a participação dessas etnias na população nacional é de 51%. E, dos
5,7 milhões de estudantes que se inscreveram para vestibulares, 1,5 milhão
havia terminado em 2012 o ensino médio, 80% dos quais (1,2 milhão) em escolas
públicas.
Mesmo sem
a legislação nova, o número de pretos e pardos na universidade multiplicou-se
por quatro entre 1997 e 2011, segundo o Censo da Educação Superior, enquanto o
de brancos pouco mais que duplicou (Estado, 17/10). E a porcentagem de pretos,
pardos e indígenas na população total do Estado de São Paulo é de 34,73%.
Adversários
das cotas na educação também têm seus argumentos, entre eles o de que a nova
legislação não promove a inclusão educacional e social dos favorecidos, apenas
oculta a falta de qualidade da educação no País. E que entrar pelo caminho das
cotas seria arriscado, introduziria por lei uma divisão perigosa na sociedade.
Também aí não faltam números para corroborar posições. Por exemplo: segundo o
Sistema de Avaliação da Educação Básica, só 12% dos alunos do 9.º período de
ensino têm aprendizado adequado em Matemática; 88% não entendem frações, não
sabem operar com porcentagens nem fazer cálculos com dinheiro; e só 22% têm um
bom aprendizado da língua portuguesa. Não é só: ainda temos 10,9 milhões de
analfabetos, 77 milhões de pessoas não têm o hábito de ler e o piso salarial
médio dos professores com 40 horas semanais de trabalho é de apenas R$
1.451,00.
Há
estatísticas em profusão. O número de assassinatos de negros no País foi 132%
maior que o de brancos, entre 2002 e 2010, enquanto caiu o número de mortes
violentas de brancos (Estado, 30/11). Mas a renda da população negra cresceu em
ritmo cinco vezes maior que a não negra em dez anos. Oito em dez pessoas que
chegam à classe média são negras (FP, 18/11). A participação das mulheres na
força de trabalho aumentou de 40% para 44,5%, entre 1992 e 2009, segundo o
IBGE. Mas elas trabalham mais que os homens, porque adicionam 22 horas semanais
de trabalho doméstico às 36 horas fora de casa, enquanto os homens somam apenas
9,5 horas a suas 43 horas semanais fora de casa. Só que a remuneração média das
mulheres é cerca de 1/3 menor que a dos homens: R$ 1.020,31, ante R$ 1.505,08.
Tudo isso num quadro em que o Brasil é um dos países de maior desigualdade no
mundo (Estado, 29/11), com 20% da população de maior renda detendo 57% da
riqueza total do País (eram 63,7% em 2001), enquanto os 40% mais pobres ficam
com 11% do total.
Todas
essas coisas trazem de volta à memória do autor destas linhas uma discussão de
que participou há 20 anos, em Salvador, na Sociedade de Cultura Negra no
Brasil, promovida pela cientista social Juana Elbein dos Santos. Ali, o
historiador Joel Rufino dos Santos começou por perguntar: Os direitos humanos
são um valor universal? Todos os povos os percebem, compartilham e aceitam da
mesma forma? Ou tudo depende da cultura, da geografia, do segmento social do
observador? Mesmo entre nós não é assim? "Grande parte do povão" -
afirmou ele - não admite que se invoquem esses direitos para proteger supostos
ou reais infratores, principalmente assaltantes, sequestradores, etc. Parece
favorável até a que se torturem esses acusados, mesmo antes de qualquer
definição judicial nos casos em que estejam expostos. "Para a parcela mais
pobre da população" - disse ele -, "os únicos laços com o Estado
estão no cobrador de impostos e na polícia" (revista Visão, 8/4/1992).
Opinião semelhante à do escritor Márcio de Souza, que mais de uma década
depois, em outra discussão, em Manaus, disse que "cultura popular só entra
no noticiário quando chega a polícia".
Quem
pesquisar mais verá que o quadro também é dramático quando se trata de etnias
indígenas. Só em 1988, depois de séculos de violências, aconteceu a primeira
condenação judicial no Brasil de um branco por assassinato de um índio. E, como
sempre, disputando as terras do outro. Nada novo, se se lembrarem os
assassinatos e suicídios de mais de 500 índios guarani kaiowá nos últimos
tempos, como tem sido relatado pela comunicação.
Vale a
pena, por tudo isso, retornar ao debate de Salvador, para destacar o pensamento
exposto na ocasião pelo professor Kabengele Mutanga, professor da Universidade
de São Paulo (USP) mas natural do Zaire (hoje República do Congo, país-sede de
uma guerra civil em que já morreram milhões de pessoas, de etnias que disputam
entre elas suas terras tradicionais, de onde foram expulsas por empresas
colonizadoras).
Exilado em
São Paulo, o professor Kabengele Mutanga foi contundente: "Temos de parar
de falar só nos direitos dos negros, dos índios e outras minorias à base de
diferenças, apenas. A base do racismo não está exatamente na negação da
diferença. Está no temor da semelhança. É pelo fato de saber que eu posso fazer
as mesmas coisas que ele, posso ocupar o lugar dele, que o branco racista me
discrimina, persegue e mata".
As
divergências são respeitáveis. Mas quem olha o panorama brasileiro, com as
diferenças econômicas, a situação do mercado de trabalho e a possibilidade de
acesso a oportunidades educacionais, certamente presta atenção às palavras do
professor Mutanga.
Fonte: O Estado de S.Paulo (SP)
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