quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Educação para quê?

A Galleria del" Accademia, de Florença, exibe muitas obras-primas da criação artística universal. A mais famosa delas é o Davi de Michelangelo (1475-1564). Perto dele estão outras esculturas, do mesmo artista, que me chamaram mais a atenção. São cinco peças aparentemente inacabadas, em que figuras humanas estão emergindo do bloco de mármore ao qual pertencem. Elas não são obras incompletas. Michelangelo deixou-as assim de propósito. São a ilustração mais vivida da concepção que ele tinha sobre o seu ofício. Michelangelo entendia que o escultor não era o criador da escultura: sua função seria apenas libertá-la do bloco de mármore que a aprisionava. Ele dizia poder visualizar perfeitamente a obra acabada ao olhar para o bloco de mármore, e sua função seria apenas “revelar aos olhos dos outros aquilo que os meus já veem”.
Nesta coluna falo bastante sobre Educação, seus problemas e o que precisamos fazer para melhorar, mas acabo não sendo explícito sobre a finalidade da Educação que defendo. É verdade que a Educação é fundamental para o desenvolvimento econômico, e que o país precisa de Escolas melhores para crescer. Mas toda formulação macro depende de uma explicação micro, que apresente a lógica no nível do indivíduo. Ninguém vai à Escola porque quer que seu país se desenvolva, nem mesmo para ter uma carreira melhor no futuro uma criança de 7 anos não faz projeções de prazo tão longo nem, quando mais crescida, permanece em uma Escola chata e frustrante. Pessoalmente, estou com Michelangelo. Acho que a boa Escola, o bom Professor, liberta o Aluno e faz com que ele possa desenvolver suas potencialidades e sonhos até os limites impostos pelo ambiente. Deixe-me elaborar.
Todos nascemos com um nível de inteligência geral (que a pesquisa chama de “g”) cujo potencial é definido por nossos genes e posteriormente moldado por fatores do ambiente a que somos expostos (há uma enorme discussão acadêmica sobre quais os pesos da genética e de fatores ambientais na inteligência final do adulto. Não sou competente para resumir essa literatura aqui, mas há um consenso de que não se pode entender a inteligência humana sem levar em consideração tanto fatores genéticos quanto ambientais e a interação entre eles). Alguns de nós (ou todos nós, se você acredita em Paulo Coelho) nascemos com talentos não relacionados com a inteligência tradicional (lógico-dedutiva), como o talento musical. esportivo, interpessoal. comunicativo e outros.
A combinação dos fatores genéticos com um ambiente ideal, estimulante, traça o limite para o progresso de cada pessoa ao longo de sua vida. Depois da concepção do embrião que dará origem à criança, esse limite máximo vai sendo reduzido pelas dificuldades da vida. Hoje sabemos que, se a futura mãe fuma, bebe ou passa por episódios agudos de stress durante a gravidez, seu filho terá danos para toda a vida. Depois do nascimento, há uma série de variáveis que conspiram para que o horizonte de possibilidades seja rebaixado. Algumas de ordem familiar pais castradores, distantes ou irresponsáveis, que traumatizam seus filhos , outras de natureza totalmente aleatória (não adianta ter a genética para o surfe se o sujeito nasce no interior da Sibéria, por exemplo). Há diversas instituições que podem contribuir para que uma pessoa atinja seu pleno potencial. A Escola é, disparado, a mais importante delas.
A função primeira da Escola é dar a seus Alunos os instrumentos de que necessitam para navegar no mundo: o domínio básico da escrita e das operações matemáticas. Sem elas, é impossível funcionar de maneira autônoma. Depois, a Escola precisa transmitir aos Alunos uma vasta base factual, expondo-os ao conhecimento acumulado pela humanidade. Não apenas porque esse conhecimento é indispensável para o desenvolvimento do raciocínio (falo mais sobre isso em artigo futuro, sobre neurociência), nem porque, se bem ensinado, é intelectualmente estimulante, uma vez que crianças são naturalmente curiosas, mas também porque essa exposição é necessária para que demos às crianças a chance de ter contato com suas reais vocações. Talvez uma criança nasça com o potencial de se tornar um médico extraordinário, mas precisará de algum contato com a biologia para facilitar o encontro com a sua vocação. Claro, não podemos ensinar na Escola todos os milhares de especializações do conhecimento humano, mas precisamos abordar as grandes áreas nas quais esses conhecimentos estão inseridos (genericamente: linguagem, matemática, ciências sociais, humanas e exatas, artes e Educação física). Finalmente, a boa Escola precisa fazer com que os Alunos possam usar esses diversos conhecimentos como ferramenta para desenvolver sua própria capacidade de pensar. Não é importante estudar história para saber nomes e datas, mas sim ser exposto a nomes e datas para que se perceba como o estudo da história pode explicar o presente. Quanto mais ferramentas analíticas a pessoa tiver à sua disposição, melhores serão suas decisões, e mais próximo de seu máximo potencial ela vai chegar. Por isso é que mesmo o Aluno que sabe que vai ser advogado deve estudar química: se bem ensinada, é mais uma ferramenta para ajudá-lo a pensar. Uma boa Educação gera multiplicidade: de interpretações e de opções.
Um mau sistema educacional gera bloqueios, limites. A má Escola é como o mau escultor: ela vai deixando tantas arestas, com tantos pedaços de mármore cobrindo a forma original, que ao fim do processo já nem é possível divisar a linda escultura que há dentro daquele bloco de pedra.
O problema da Educação brasileira não é apenas relevante porque priva o país de riquezas e desenvolvimento. Riqueza não é um fim, é um meio. A finalidade da vida é a felicidade, a plenitude. E é isso que nos é roubado ao termos um sistema educacional tão incompetente: a cada dia, milhões de brasileiros ficam mais e mais longe do limite de suas realizações, da concretização de seus projetos. Quantos brilhantes escritores não estamos perdendo entre todos os Analfabetos funcionais que saem de nossas classes de português? Quantos futuros médicos, advogados e engenheiros tiveram de sacrificar seus sonhos e viver uma vida apequenada porque não conseguiram entrar em uma universidade? Milhões e milhões, certamente.
Não é fácil aceitar que o papel da Educação é a libertação do potencial de cada indivíduo. Presume aceitar que somos diferentes, com capacidades distintas e possibilidades idem. Requer que se admita que a Escola não pode criar o novo homem, moldar o Aluno. O Professor pode apenas dar asas ao Aluno para que alce voos mais altos, não determinar o local de chegada. No Brasil, crê-se que um sistema educacional justo é aquele que entrega, ao fim do processo, as mesmas esculturas, como se todos os mármores tivessem as mesmas origens e aspirações. Para chegar a esse nivelamento, o único caminho possível é a equalização por baixo, a chegada ao mínimo denominador comum. Se aceitamos as diferenças como inerentes à condição humana, percebemos como a busca pela igualdade é a mais atroz das formas de injustiça. Que em 2013 sejamos mais eficazes ao impedir essa mutilação silenciosa das nossas crianças. São os meus votos para o novo ano.
Fonte: Revista Veja

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