Mês passado, o Brasil olhou para o Rio de Janeiro com orgulho pelo desempenho de seus policiais: alguns deles pelo heroísmo de recusar propina de traficante; outros pela competência e heroísmo de ocupar a Rocinha.
Mas, surpreendentemente, o orgulho com o heroísmo de alguns brasileiros provoca um sentimento de vergonha em relação à estrutura social do país: afinal, onde estamos errando ao ponto de a honestidade virar gesto heróico; onde erramos, ao ponto de ser necessário hastear a bandeira do país, em seu próprio território, como se fosse conquista de território estrangeiro?
Se no Brasil a honestidade fosse adotada como valor, a recusa de propina não seria publicada nem seria prova de heroísmo. Não se pode negar o heroísmo dos policiais, nem a consequente satisfação e orgulho de cada brasileiro, mas é preciso refletir sobre as causas desse sentimento de orgulho vir acompanhado do constrangimento.
Se o Brasil tivesse investido de maneira eficiente e solidária nas políticas públicas, não teria sido necessário ocupar agora militarmente a Rocinha.
A ocupação militar, como se tomássemos um território estrangeiro, decorre de que, ao longo de décadas, tratamos a Rocinha como um território estrangeiro.
Do ponto de vista dos investimentos públicos, os dados sociais da Rocinha são tão contrastantes com aqueles da parte rica do Rio de Janeiro que parecem corresponder a um país diferente.
É isso que pode explicar o hasteamento da bandeira nacional na Rocinha depois da ocupação, como se a 7ª potência econômica invadisse o território de outro país em 84º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano.
A ideia das UPPs é ocupar militarmente para depois enfrentar a desigualdade na qualidade dos serviços públicos, transformando uma favela em bairro. Se a Rocinha tivesse sido tratada como um bairro do Rio, hoje não seria necessária a ocupação militar para iniciar a transformação da favela em bairro.
Isso não diminui, até engrandece, os policiais militares e civis, o secretário de Segurança, o governador e o vice-governador pelas decisões e pelo sucesso das operações.
Sobretudo o tenente Disraeli. Mas o orgulho em relação a cada pessoa envergonha o país como um todo, pois é prova de que somos uma fábrica de heroísmos isolados, de pessoas que fazem o certo nadando contra a corrente, tolerando o errado.
Recusar propina deveria ser um ato simples, óbvio; como deveria ser óbvio investir igualmente na qualidade de vida em todas as regiões. Mas nos acostumamos com a corrupção e a desigualdade, a exceção é o heroísmo, e a ocupação militar é solução.
A convivência com a corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades, obscurece a percepção da fragilidade de nosso orgulho nesta semana. Perdemos o desejo de orgulho por razões diferentes daquelas dessa semana. Até não se acredita ser possível o orgulho pela abolição do analfabetismo, pela garantia de escola de qualidade para todos.
Nessa mesma semana em que aplaudimos policiais cariocas por ocuparem favelas, os chineses ocuparam o espaço sideral, acoplaram duas naves criadas por sua própria tecnologia e produção. Há décadas, nós estávamos à frente da China e da Índia em matéria de pesquisas espaciais.
Agora, nosso orgulho é com a ocupação do solo urbano, enquanto eles ocupam o espaço sideral. Em breve o Irã, a Coreia do Sul e países com tamanhos e potenciais econômicos muito menores que os nossos estarão à nossa frente.
Da mesma forma que deixamos de perceber o absurdo de nosso atraso ético, que considera heróis os que não se corrompem, e de fato são heróis, já deixamos de comparar nosso atraso técnico em relação ao resto do mundo.
Acostumamo-nos tanto com estarmos atrasados que comemoramos com orgulho um gesto pessoal que deveria ser normal e uma pacificação urbana que já deveríamos ter atingido.
Tudo isso porque não consideramos heróis os dois milhões de professores, sem salários, sem condições básicas de trabalho, sem ambiente favorável para o trabalho.
O Brasil estará no bom caminho quando honesto não for herói, for apenas honesto; e quando favela não for favela, for apenas bairro. Mas isso só acontecerá quando professor também não for herói, for apenas professor, bem remunerado, bem preparado e bem dedicado.
Se isso já tivesse acontecido, talvez já tivéssemos passado do tempo em que ser honesto é um ato heroico, e nem seria necessário comemorar a ocupação militar de parte do nosso próprio território.
Cristovam Buarque, in: O Globo (RJ)
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