Passar seis, sete ou até nove anos na escola sem sequer saber ler e escrever. Por mais absurda que essa situação possa parecer, não chega a ser uma raridade na rede pública de ensino. Os educadores de diferentes regiões brasileiras conhecem bem esse problema. A pedagoga Yvonne Bezerra de Mello, responsável pelo Projeto Uerê, na cidade do Rio de Janeiro, atende com frequência adolescentes analfabetos que ingressam no ensino médio. A professora Ana Carolina de Lima Rodrigues Amado lecionou para uma turma de 8º ano em 2011, na cidade de Diadema (SP), em que três alunos eram apenas copistas, metade semialfabetizada e os outros ainda tinham grandes dificuldades para interpretar frases e problemas simples de Matemática. Mesmo sem as competências necessárias, os alunos vão passando de ano graças à progressão continuada ou ao sistema de ciclos, como também é chamada, em que a repetência só pode acontecer no final de cada ciclo, a cada três ou quatro anos. Os problemas são empurrados para frente e as consequências se refletem nos baixos índices de desempenho dos estudantes e também nas altas taxas de reprovação no ensino médio, etapa em que o modelo é pouco aplicado. Especialistas e educadores que convivem com esse cenário diariamente revelam as distorções que a progressão continuada sofreu ao longo dos anos e os seus impactos no aprendizado e no trabalho docente.
A progressão continuada surgiu no Brasil na década de 1960 como uma maneira de reduzir as altas taxas de reprovação e evasão escolar. Mas foi mais amplamente adotada pelos sistemas de ensino a partir de 1990. Segundo dados do Censo Escolar de 2006, considerando apenas instituições estaduais urbanas, 41,3% das escolas seguem o regime de ciclos no País. O principal argumento dos defensores desse formato se apoia no fato de que a repetência estimula a evasão. De fato, de acordo com Naercio Menezes Filho, economista e um dos autores do estudo Avaliando o impacto da progressão continuada nas taxas de rendimento e desempenho escolar do Brasil, o modelo aumenta a aprovação em oito pontos percentuais e reduz o abandono em dois pontos no ensino fundamental e em quatro no ensino médio. Com relação ao desempenho, na comparação com o sistema seriado, segundo o pesquisador, que também é professor e coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, de São Paulo (SP), o impacto não é muito significante, entretanto os resultados pioram no último ano do ensino fundamental. A progressão continuada reduz a nota em Matemática no 9º ano em 1,8% e em Língua Portuguesa em 1,3%. Menezes acredita que o menor desempenho não é ocasionado apenas por déficits de aprendizagem que se acumulam ao longo dos anos. “Pode ser também que os ‘piores’ alunos saiam das escolas seriadas (com taxa de abandono maior), ao passo que eles permanecem nas escolas com progressão continuada. Assim, a nota média dessas últimas (que inclui esses alunos) tende a ser menor.”
Mas as notas nem sempre fornecem um bom parâmetro para avaliar o desempenho dos estudantes. Professores do ensino fundamental da rede estadual amazonense, que adota a progressão continuada, denunciaram na imprensa que são pressionados a ministrar quantas avaliações e atividades forem necessárias para que os alunos obtenham o conceito que precisam para serem aprovados. A secretária de Assuntos Educacionais do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado do Amazonas (Sinteam), Eliana Teixeira, confirma que isso acontece e afirma que a situação não é exclusiva do Amazonas. Eliana conta que os relatos desse problema são frequentes, mas até agora não houve nenhuma denúncia formal, pois os docentes temem represálias. “Os professores dizem que são pressionados pela direção”, explica a secretária. Como a progressão continuada eleva as taxas de aprovação e reduz as de reprovação, os indicadores educacionais melhoram, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), em que esses dados são levados em conta. Entretanto, o que muitas vezes ninguém vê é o caminho percorrido para chegar até esses números. As escolas da rede estadual amazonense possuem metas atreladas ao Ideb e, consequentemente, aos índices de reprovação. Algumas instituições fazem parte de um programa de meritocracia que premia as escolas e os professores com 14º e 15º salários com base nesses resultados, o que aumenta a pressão pela aprovação. A secretária do Sinteam revela também que já recebeu relatos – porém, sem provas –, de que diretores chegam a adulterar as notas dos alunos para poderem aprová-los.
Fonte: Revista Profissão Mestre
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