Em artigo recente (A UNE deles e a nossa, 1.º/9, A2), Demétrio Magnoli, comparando a situação educacional do Brasil com a do Chile, honra-me com a distinção de tomar o meu nome como designativo do ensino privado brasileiro, que ele contrapõe à escola pública, onde os alunos "aprendem muito menos do que os das escolas privadas".
Não é o caso de contestar esse diagnóstico, se aplicado ao sistema pré-universitário, pois todos os indicadores de que dispomos confirmam a superioridade do ensino da rede privada (devendo-se sempre ressalvar as ilhas de excelência que a escola pública pode justamente ostentar, graças ao empenho abnegado e mesmo heroico de não poucos professores e funcionários).
Meus reparos ao artigo de Magnoli são de outra ordem e dizem respeito ao quadro da educação brasileira que ele esboça para traçar um paralelo com situação que tem gerado protestos no Chile. Além disso, creio que merece consideração atenta a contraposição entre escola pública e privada, que alicerça a visão e os argumentos contidos no artigo.
As deficiências do sistema educacional brasileiro como um todo são notórias e sempre confirmadas pelos indicadores nacionais e internacionais. Não obstante, o bordão alarmista repetidamente brandido no artigo de Magnoli - "O Chile é aqui" - não se justifica, por inúmeras razões.
Uma primeira diferença significativa em relação ao Chile está em que os nossos resultados não se têm mostrado estagnados, como os de lá, mas apresentam melhora - ainda que intoleravelmente menor que a melhora de que precisamos.
O fato, porém, é que temos melhorado - e sabe-se que melhoras na Educação dependem de processos de longa duração, cujos resultados significativos não se colhem em menos de uma geração. Mas se temos melhorado, ainda que pouco, isso se deve a uma situação que, em aspectos fundamentais, não tem semelhança com a chilena.
Segundo sabemos - inclusive pelas palavras da representante estudantil chilena que visita o Brasil a convite da União Nacional dos Estudantes (UNE) -, uma das reivindicações centrais do movimento dos estudantes chilenos é a regulação, ou seja, regulamentação e controle do sistema escolar, cuja anomia é ressaltada no artigo de Magnoli:
"Todas as escolas públicas passaram a gozar de autonomia pedagógica, com a abolição dos currículos nacionais, e de autonomia administrativa, com a supressão da contratação pública de professores, mesmo nas escolas municipais".
Ora, se alguma crítica se pode fazer ao sistema educacional brasileiro, quanto a isso, é a de pecar pelo oposto. Tradicionalmente não nos faltam normas - normas concernentes aos mais diversos aspectos das atividades educacionais, abrangendo tanto a escola pública quanto a privada - e ultimamente essas normas só têm aumentado.
Mais importante: as formas de fiscalização e aferição tornaram-se muito mais abrangentes e exigentes, num processo de ampliação e rigor crescente que remonta à criação de sistemas nacionais de avaliação, como são - ou se tornaram -, para ficarmos em três exemplos de vulto, o Ideb (Prova Brasil), o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), sobretudo depois de sua reformulação, e o "Provão", que resultou no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes).
Este último, ressalte-se, tem sido responsável por inquestionável aperfeiçoamento do ensino superior - aperfeiçoamento ainda compreensivelmente modesto, dada a aplicação recente da nova metodologia, em área em que não cabe esperar resultados em prazo curto.
Outro ponto em que os fatos contrariam afirmações contidas no artigo diz respeito ao destino que estariam tendo os bolsistas do ProUni, condenados a "preencher vagas ociosas nas piores universidades privadas". Primeiro, não se trata de "vagas ociosas", mas de vagas como quaisquer outras, concedidas a bolsistas.
Depois, não se trata das "piores universidades privadas", mas das universidades privadas em geral. Quanto às "piores" dentre elas, ao contrário do que proclama Magnoli, os resultados deficientes no Enade acabam por levá-las ao descredenciamento do ProUni.
Ainda no que se refere ao ProUni, peço licença para acrescentar - sem interpretá-los - dois dados ausentes do artigo de Magnoli que ajudam a compor um quadro mais verdadeiro da situação, mostrando que ela diverge significativamente da do Chile em outros aspectos decisivos.
O primeiro é que o ProUni inclui hoje nas escolas superiores brasileiras 502 mil estudantes. Avalie-se o que isso representa, levando em conta que há cerca de 800 mil matrículas nas universidades federais. O segundo dado, eloquente qualquer que seja o sentido que se lhe dê, é que o custo médio anual de um aluno nas universidades federais é de R$ 15 mil, enquanto o de um aluno do ProUni nas instituições privadas, em termos de renúncia fiscal, é de R$ 2.100.
Para além dessas inexatidões e omissões, porém, o artigo de Magnoli exprime uma visão da educação que, paradoxalmente nesse crítico contumaz da esquerda, remonta a um esquerdismo arcaico que os fatos insistem em desaconselhar.
Refiro-me à oposição entre escola pública e escola privada, como se houvesse entre elas incompatibilidades inconciliáveis e o sucesso da segunda dependesse de deficiências da primeira.
Não é a situação que vemos nos países mais bem-sucedidos na área educacional, em que um sistema público amplo rivaliza com o privado e mesmo o supera em qualidade, com ele convivendo sem incompatibilidade, mas com a complementaridade adequada a sociedades abertas e plurais.
É o modelo que devemos almejar para o Brasil, com sistemas público e privado de ensino que ocupem os espaços devidos na sociedade e mutuamente se reforcem em prol do desenvolvimento intelectual e material do País.
João Carlos Di Genio, in: O Globo (RJ) e O Estado de São Paulo (SP)
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