Em toda a sua vida como religioso, adepto da Teologia da Libertação, e como assessor de diversos movimentos sociais, Carlos Alberto Libânio Christo, ou simplesmente Frei Betto, enfatizou a ética e os valores humanos como imprescindíveis na formação de uma sociedade solidária. Autor de mais de 50 livros e criador do Programa Fome Zero, que chefiou por dois anos no primeiro mandato do ex-presidente Lula, o frade dominicano defende que a escola tem que incutir esperança, o que será realizado apenas se for trabalhada a subjetividade do aluno. “É no coração que encontramos as razões para imprimir um sentido na vida. Quando não encontramos dentro, vamos procurar de alguma outra forma, e aí os jovens encontram as drogas”, afirma.
Frei Betto idealiza uma escola que forme cidadãos felizes, com consciência da sua finalidade. “Temos que admitir algo muito simples: a escola é um núcleo de formação política de cidadania e tem que se assumir como tal. Não existe escola neutra e apolítica. Ou você está de acordo com o que existe e nada faz ou você se revolta com a desigualdade e age para de alguma forma erradicá-la”, acredita.
Nesta entrevista para a Profissão Mestre, ele apresenta essa proposta de escola para formar cidadãos e não poupa críticas aos caminhos mercadológicos de mera formação de consumidores e mão de obra qualificada que a educação brasileira trilha atualmente. Também justifica sua atitude constante de posicionar-se politicamente mesmo sendo um religioso: “Sou discípulo de um homem que foi preso, condenado por dois poderes e morto na cruz por razões políticas, não religiosas”.
Profissão Mestre: Qual é o conceito de cidadania que o senhor considera para fundamentar a sua proposta de formação cidadã?
Frei Betto: A escola tende cada vez mais a entrar no paradigma pós-moderno de mercantilização de todas as relações sociais e, portanto, transformar-se numa usina de produção de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho. Não é essa a finalidade da escola. Ela deve formar pessoas felizes e cidadãs. Por cidadão entendo a pessoa com a consciência de que é um ser político, no sentido de que falava Aristóteles, ou seja, alguém dotado de direitos, que devem ser assegurados e respeitados por seus semelhantes, e deveres para com esses mesmos semelhantes, no sentido de cada vez mais participar do processo de construção de uma civilização marcada pela solidariedade.
Profissão Mestre: O senhor acredita que algumas pessoas tomam posicionamento político pela omissão. As escolas e os sistemas de ensino têm adotado essa postura?
Frei Betto: Eu diria que a escola não tem assumido o seu papel político. Muitas não incentivam seus alunos a formar grêmios, associações, academias de letras e diretórios estudantis, o que é uma grave falha. A escola não pode ignorar o contexto social no qual se insere. Formar cidadãos é formar pessoas conscientes e críticas frente a esse mesmo contexto social. Muitas escolas sacramentam a desigualdade social, os tabus, os preconceitos e as discriminações por omissão, por não abordarem essas questões, por não levarem para dentro da sala de aula os fatos importantes e urgentes da sociedade atual como eles são, tais como a guerra, o terrorismo, a homofobia, o machismo, a questão ecológica, enfim, uma infinidade de temas.
Profissão Mestre: O professor, nesse cenário, pode acabar sem respaldo. Como tomar um posicionamento que não seja o da omissão?
Frei Betto: De fato, o docente é um grande sacrificado porque trabalha em péssimas condições, é mal remunerado, não tem suficiente condição de pesquisa, [ou como] reciclar-se, etc. Portanto, acho que os professores têm que se organizar nas suas associações e sindicatos para pressionar os sistemas de ensino e, sobretudo, o poder público, para conquistar e assegurar direitos.
Profissão Mestre: O papel do professor está contextualizado dentro de um projeto de escola, que deve atender um determinado estado e nação. Existe um projeto de nação e de escola claro no Brasil?
Frei Betto: Na minha cabeça existe um projeto de Brasil, que seria uma nação saudável, digna, livre e pacífica, mas não sei se esse “projeto-Brasil” está claro nas escolas. Defendo há muitos anos que toda escola deveria ter o seu próprio planejamento estratégico, de tal maneira que só deveria incorporar professores sintonizados com isso. Exemplo: seremos uma escola para formar homens e mulheres que lutem contra a desigualdade social, destituídos de preconceitos vigentes em relação a, por exemplo, homossexualismo, que não façam discriminação religiosa, com espírito ecumênico e solidário, sensíveis aos movimentos sociais e populares. Isso já seria um projeto estratégico para uma escola.
Profissão Mestre: Mas as escolas já não admitem apenas professores que comunguem os mesmos valores?
Frei Betto: Toda escola tem os seus valores, seu esquema, seu projeto, às vezes um projeto meramente capitalista, uma escola que simplesmente forma o maior número de alunos aprovados no vestibular. Apenas mão de obra qualificada para o mercado e sem incutir valores como ética, ideais e sentido de vida.
Profissão Mestre: Uma das coisas que mais se ouve de professores é a desconexão entre família e escola. A família entrega seu filho na escola e espera que volte uma pessoa diferente, mas dentro de suas próprias expectativas. Como o senhor avalia essa questão?
Frei Betto: Culpa da escola, que deveria exigir da família um compromisso mínimo para sua presença durante o ano. A escola é um quadrilátero formado por professores, alunos, família e funcionários. O ideal seria que todos estivessem abertos à comunidade circundante, mas a escola não consegue promover essa conexão. Assim como ela exige a presença diária do aluno em sala de aula, deveria exigir lá, no ato da matrícula, a presença dos pais nas reuniões às quais são convocados.
Profissão Mestre: Nas escolas de periferia é comum a falta de identificação do aluno com a escola. O professor é visto como preposto de um Estado distante da sua realidade. O que a escola pode fazer para se aproximar?
Frei Betto: Está faltando pedagogia da escola em relação à comunidade circundante. A coisa mais simples na periferia seria a escola abrir aos sábados e domingos para esportes, música, churrasco, eventos de poesia, dança, etc. A escola deveria se abrir para que pais e professores dessem pequenas instruções a pessoas que têm disponibilidade somente no final de semana para frequentar esse ambiente e aprender a cozinhar, cortar cabelo, um pouco mais de aritmética, língua portuguesa para saber escrever uma carta simples sem graves erros. É muito simples! Basta ter vontade.
Profissão Mestre: Essa falta de vontade é de quem?
Frei Betto: As secretarias de educação deveriam ter políticas de entrosamento das escolas com as comunidades.
Profissão Mestre: O senhor tem alguma sugestão para conseguir o engajamento discente sem deixar de cumprir os conteúdos básicos propostos pelo MEC?
Frei Betto: Evidente que devemos ter conteúdos básicos, mas aí também entram temas transversais. É uma questão de criatividade pedagógica da escola para lidar com as peculiaridades do seu contexto. Não se pode ter uma escola na Amazônia que não leve em conta, na questão ambiental, os rios, a floresta e o gás carbônico, assim como não se pode ter em São Paulo uma escola que não trate com maior atenção sobre superpopulação, migração e violência urbana.
Profissão Mestre: Essa solução não se daria individualmente.
Frei Betto: É uma questão de política nacional de educação, e não temos uma clara. Qual é o objetivo da escola no Brasil? Na verdade, hoje, é formar mão de obra qualificada, com uma progressiva mercantilização e sem conteúdo ético e humanístico. Os níveis de violência e bullying são muito grandes, com esgarçamento dos valores e da subjetividade. É preciso rever que tipo de escola temos e que tipo de cidadãos estamos produzindo nela. Os alunos saem cidadãos ou consumistas? Cidadãos ou oportunistas? Cidadãos ou alpinistas sociais? O sujeito fica anos na escola e sai pensando em passar os outros para trás, tornar-se milionário em dez anos. Que educação é essa? Sem nenhum valor espiritual, nada preocupada com a ética! O cidadão só não quer ser preso, mas não necessariamente está preocupado com a ética. Se puder passar o outro para trás no silêncio sem ser surpreendido, ele o faz. Não teria problemas em cometer crimes, desde que não seja preso.
Profissão Mestre: Como os meios de comunicação influenciam na formação desse senso?
Frei Betto: Hoje há um esvaziamento da subjetividade, causado pelo vício da televisão. Todo produto cultural é dialógico, e a TV é uma ditadura monológica. Ela cativa e hipnotiza com o entretenimento, aquilo que mexe com os cinco sentidos e com as nossas carências. Durante muito tempo a publicidade enfrentou o desafio de entrar no universo infantil porque a criança tem um mundo onírico, a sua fantasia. A publicidade descobriu como transformá-la em consumista com uma fórmula óbvia e perversa: a erotização precoce da criança. Quando se prende a atenção de uma criança de 4 ou 5 anos ela se torna consumista, e depois se tornará esquizofrênica, pois terá vocabulário, trejeitos e desejos de adulto. Os pais acham que são superdotadas, e não sabem que a criança está transferindo seu universo onírico para aquilo que ela vê na TV. É um ser biologicamente infantil e psicologicamente “adulto”. Quando chega à puberdade tem mais medo do real do que a minha geração teve, pois tem débito de sonhos. A infância não foi vivida satisfatoriamente e/ou seus sonhos foram vividos pela mídia, ou a criança entrou muito cedo no mundo dos adultos, na condição de consumista.
Profissão Mestre: Como a escola pode contribuir para que a criança não tenha os seus sonhos furtados ou terceirizados?
Frei Betto: É muito importante levar para dentro da sala de aula a imagem, não somente o livro, para debater a publicidade, para os alunos deglutirem a imagem e decifrá-la. Quando se faz isso gera-se um distanciamento do consumismo proposto na publicidade. O professor de Física, por exemplo, deve levar a Fórmula 1 para a sala de aula. Uma obra literária tem texto, contexto e pretexto. A escola tem que se contextualizar, e gerar o pretexto, a razão de ser das coisas, o sentido da vida. Tem que trabalhar com a atualidade, com o que está fazendo sucesso na TV, o que os alunos estão consumindo.
Fonte: Revista Profissão Mestre
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