O educador José Pacheco, mestre em Ciências da Educação, é o idealizador de um dos casos mais bem-sucedidos de inovação em Educação, a Escola da Ponte, na cidade do Porto, em Portugal. Para ele, a Educação brasileira colhe o que plantou e não padece de falta de recursos, mas da má administração deles. Confira a seguir a entrevista concedida ao Educação & Ensino:
Quase 100% das crianças foram matriculadas no Brasil. Mas isso não quer dizer que elas estão aprendendo. Há dados que mostram que há alunos que chegam ao ensino médio analfabetos ou incapazes de fazer uma interpretação de texto, por exemplo. Por que motivos isso acontece?
O modelo dito “tradicional”, aquele em que é suposto ser possível transmitir conhecimento, como se professores e alunos fossem vasos comunicantes, faliu muito tempo atrás. Se o modelo epistemológico baseado na transmissão faliu, por que razão se mantém o modelo organizacional que o suporta?
A manutenção de práticas obsoletas é criminosa. Ou seremos cegos perante a dura realidade de um país em que milhões de alunos não completam o ensino fundamental, onde milhões de brasileiros sobrevivem na tragédia do analfabetismo funcional?
Talvez falte competência naqueles que detêm a responsabilidade de tomar decisões de política educativa. Talvez falte dignidade profissional em muitos professores. Ou talvez seja conveniente às elites que a reprodução da ignorância e das desigualdades sociais perdurem.
Os dogmas velhos cercearam a responsabilidade cidadã e a curiosidade científica. O Estado burocrático impõe um sistema de ensino centralizado, estruturas curriculares rígidas e modos de organização do trabalho Escolar obsoletos. Resultados? Setenta por cento dos brasileiros não conseguem interpretar um texto simples. E as Escolas continuam a exigir decorebas de “piroclásticas”, “dolomitas” e “crivos de Eratóstenes”...
Que fatores levam a essa situação?
Que fatores levam a essa situação?
Anualmente são desperdiçados 56 bilhões de reais por má gestão do dinheiro público investido na Educação. As causas são: corrupção, burocracia, escolhas políticas equivocadas, má gestão. A Escola mantém-se conivente com o estímulo da competitividade, fomenta o imediatismo e a frivolidade.
Reifica o virtual, a transitoriedade. Colhemos aquilo que semeamos. Desde há mais de dois séculos desenvolvemos e alimentamos um sistema educacional reprodutor de absurdos, produtor de múltiplas formas de ignorância e reprodutor de desigualdades sociais.
Reifica o virtual, a transitoriedade. Colhemos aquilo que semeamos. Desde há mais de dois séculos desenvolvemos e alimentamos um sistema educacional reprodutor de absurdos, produtor de múltiplas formas de ignorância e reprodutor de desigualdades sociais.
O senhor conhece iniciativas brasileiras que estejam combatendo o problema da falta de aprendizagem ou da má qualidade do ensino?
Acompanho algumas práticas, que poderei designar de “Educação integral, numa Escola integrada, em tempo integral”. Ainda que embrionárias, partem de desejos e necessidades sentidas pelos atores locais, esses projetos acontecem a todo o momento e em múltiplos espaços.
Requerem descentralização, questionamento do modelo de relação hierárquica, negociação e contrato, iniciativas culturais, disponibilização de equipamentos coletivos, flexibilidade na organização, respeito pela diversidade.
É conhecida a minha relutância relativamente a iniciativas provindas dos centros dos sistemas educativos. Mas, quando tive oportunidade de participar num evento organizado pelo MEC, confirmei o velho aforismo que nos diz que só um jegue velho não muda de opinião. Assisti a depoimentos de secretarias de Educação e de universidades envolvidas no “Mais Educação”.
Recolhi dados da avaliação, ouvi falar de currículo na Educação integral e de estratégias para implantar a Educação integral no Brasil. Falou-se de Educação integral e não de meras “escolas em tempo integral”. Há, no Brasil, Escolas que reconfiguram as suas práticas. Admiro a abertura e generosidade dos professores brasileiros com quem trabalho. Não copiam, mas reinventam.
O que poderia ser feito para evitar as falhas na Educação das crianças e jovens brasileiros?
O Brasil não padece de carência de recursos; o Brasil gere mal, ou desperdiça recursos. Se as Escolas se converteram ao mundo digital, mas mantêm e reforçam práticas de ensino obsoletas, o improviso e o imediatismo das “novas” práticas faz prosperar o insucesso. Urge instituir novas e autonômicas formas de organização das Escolas, mas também recuperar práticas antigas.
É necessário prudência. A mudança em Educação é um processo complexo e moroso: para grandes metas, pequenos passos. Urge buscar uma Escola do conhecimento e abandonar um ensino meramente transmissivo, fomentar a organização do acesso à informação e a aprendizagem do uso do conhecimento.
A mudança das instituições passa pela transformação do eu das pessoas que as mantêm. Estabeleça-se uma práxis pautada numa ética da responsabilidade e numa relação dialógica e não hierárquica. Que os professores reelaborarem a sua cultura pessoal e profissional, no exercício da convivencialidade. Que recusem ideias feitas e escapem à síndrome do pensamento único.
Freire disse que “não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor”. E Agostinho da Silva acrescentou:
“Temos de reorganizar todo o sistema educacional, de maneira que para o aluno brasileiro haja mais esforço no sentido de descobrir a realidade do que ela ser comunicada por um professor. Talvez se nós ouvíssemos o estudante, o estudante viesse com o espírito de descobrimento do século XIV e viesse com o espírito que foi criativo em Canudos”. Escutêmo-los.
Gazeta do Povo (PR)
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