Em uma sala do 7º ano do ensino
fundamental na década de 1990, a professora de português pediu que cada aluno
escolhesse um livro de seu interesse para ler. Ao final do processo, propôs
exercícios aplicáveis para qualquer obra que os alunos tivessem escolhido. Esse
ritual, que se repetiu ao longo de todo o ano letivo, é uma memória que marcou
Thaís Granato, hoje veterinária. "A liberdade foi o que me cativou. A
descoberta de diversos temas que me interessavam, justamente no início da
adolescência, incentivou o desenvolvimento da minha identidade", conta.
"A possibilidade de escolher os temas que quisesse, sem pressão, permitiu
que eu tivesse uma ótima ligação com a leitura", continua. Não por
coincidência, a época foi a mesma em que ela leu, à parte das tarefas da
escola, seu primeiro livro por iniciativa própria: História Sem Fim, de Michel
Ende.
A história de Thaís dialoga com uma
das conclusões da pesquisa "Retratos da Leitura no Brasil",
recém-divulgada pelo Instituto Pró-Livro e pelo Ibope Inteligência. Uma das
conclusões do estudo é que, pela primeira vez, a figura que mais influencia os
leitores (considerados pessoas que leram ao menos um livro nos três meses
precedentes ao questionário da pesquisa) são os professores, logo acima das
mães, que sempre lideraram a função.
A investigação dos motivos pelos
quais essa mudança aconteceu será tema de um próximo estudo do Instituto
Pró-Livro, mas a gerente de projetos da instituição, Zoara Failla, já faz
suposições. Para ela, uma das coordenadoras da pesquisa, o resultado se explica
pelo investimento dos governos na melhoria das bibliotecas escolares e em
formação de professores como mediadores de leitura. "Espero que estejamos
conseguindo resultados nesse sentido", diz. Já Ezequiel Theodoro da Silva,
da Faculdade de Educação da Universidade Estadual da Campinhas (Unicamp), e
autor do site Leituracritica.com.br, faz uma análise menos otimista. "Há
um movimento de conscientização maior dentro da classe do magistério e uma
sensibilidade melhor dos governos para a importância de ler, mas nada disso
melhorou o desempenho em leitura até agora. Todas as pesquisas mostram que os
avanços em leitura são diminutos", observa.
Para o pesquisador, se o suposto investimento fosse o
motivo dessa mudança na função do professor como incentivador, o retrato da
leitura no Brasil hoje seria completamente diferente. A própria pesquisa da
Pró-livro mostra que os brasileiros leem cada vez menos - a amostra de leitores
caiu de 55% em 2007 para 50% em 2011. O dado, somado aos resultados catastróficos
do Brasil no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) em relação à
leitura, já revela um cenário negativo. Silva responsabiliza parte desse
panorama justamente à má formação de professores. "Um fenômeno terrível no
Brasil é o enfraquecimento da formação de professores em função da privatização
das faculdades. Ainda mais na questão da leitura, que fica debilitada porque é
tratada nessas escolas em termos de didática em geral", critica.
Transposição de responsabilidade
O real motivo para o professor ter
assumido a função de fazer os jovens pegarem gosto por livros, ainda de acordo
com o pesquisador, é decorrente de um fenômeno preocupante. Essa transferência
de papéis viria junto com o movimento dos pais, especialmente das mães, de trabalhar
fora de casa e não ter tempo de acompanhar os estudos e incentivar a leitura
com os filhos. Com isso, a responsabilidade é repassada para a escola.
"Muitas coisas que eu aprendi com os meus pais, como escovar os dentes e
me alimentar corretamente são hoje esperadas da escola. A descoberta da
pesquisa remete a esse enfraquecimento de responsabilidades familiares e o
fortalecimento das responsabilidades da escola", afirma Silva. Ele enxerga
os professores como "super-homens" e "mulheres-maravilha",
no sentido que é esperado que eles assumam a responsabilidade da família ao
mesmo tempo que não são dadas as condições ideais de trabalho para que eles
façam isso - logo, a expectativa é sobre-humana.
Além da questão do trabalho e da
falta de tempo dos pais, Zoara, do Pró-Livro, explica que a melhora da condição
econômica média do brasileiro só se refletiu na questão de bens materiais, e
não culturais. Isso quer dizer que mesmo quem hoje faz parte da classe média
não se identifica com a leitura. "Só ganharam poder aquisitivo, mas não
podemos dizer que deram um salto na questão da leitura. E se esse é o perfil da
mãe, a escola precisa suprir essa lacuna", explica. Segundo ela, a maior
parte das famílias não tem livros em casa e um percentual grande de chefes de família
só possui o ensino fundamental e/ou são analfabetos, o que se reflete em como a
criança cria seu conceito sobre o livro. "É mais fácil a família criar
esse gosto pela leitura a partir do exemplo, lendo em casa ou presenteando com
livros."
A afirmação de Zoara se baseia na conclusão da pesquisa de
que 49% dos leitores veem ou viam suas mães lendo sempre ou de vez em quando,
enquanto 63% de quem não lê relatou que nunca viram a mãe ler. Quando a mesma
pergunta é feita em relação ao pai, então, os resultados são bem piores: apenas
32% viram seus pais lendo sempre ou eventualmente, enquanto 68% dos não
leitores nunca tiveram essa experiência. Além disso, o estudo mostra que quem
ganhou livros ao longo da vida com mais frequência tende a ser leitor. Entre os
que não leem, 87% nunca foram presenteados com um livro.
Exemplos reais
Ana Graziela Cabral, atualmente
professora particular de língua portuguesa e literatura, enxerga seu perfil
retratado pela pesquisa, bem como o dos pais e alunos com quem tem contato.
"Dentre os fatores que levam ao decréscimo do interesse dos jovens pelos
livros, pode-se destacar a falta de valorização da leitura em casa, de forma
que os filhos não encontram nos pais um espelho, transferindo para o professor
a imagem de leitor modelo", afirma. "Esses e muitos outros fatores
sociais e culturais tornam o docente o maior responsável por imprimir nos
alunos um genuíno interesse pelos livros."
Patrícia Oliveira, professora do 2º
ano do ensino fundamental da E.E. Professor Astor Vasques Lopes, de
Itapetininga (SP), concorda com Ana Graziela. Nos projetos de incentivo à
leitura feitos pela escola - descritos na página 40 - ela participa da contação
de histórias para os alunos, e observa como os pais convidados para a atividade
ficam, assim como os filhos, admirados com a forma como eles trabalham os
livros. "Nosso papel na sala de aula é servir de exemplo para o aluno,
porque se não demonstrarmos interesse ele também não vai querer ler. Mas o pai
também nos vê como exemplo porque se espelha em como o professor lê", diz.
Fonte: Revista Educação
Nenhum comentário:
Postar um comentário